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quinta-feira, 27 de agosto de 2009



Sempre encontrei em prefácios de livros de poesia, mais conceitos literários do que o sentido fenomenológico do mundo vivido pelos poetas. Esses conceitos cristalizados geralmente determinam a concepção de "belo" e induz os leitores a uma opinião já formada, desviando a capacidade dos leitores de mergulharem com suas próprias percepções no mundo vivido pelos poetas. O texto abaixo, de minha autoria, além de ser a afetação da experiência estética que Cancão me porporciona, é uma tentativa de mostrar que podemos caminhar com os nossos próprios pés pelo mundo bucólico do poeta Cancão. Após o texto, apresento o seu poema clássico, "Depois Da chuva". Que cada um dê seus próprios passos na poética de Cancão.


O BUCÓLICO MUNDO DO POETA CANCÃO

Mergulhar no universo da poesia de Cancão, nos leva ao mundo do sonho e da fantasia, o qual nos faz crer que a divina providência fez todos os esforços possíveis para realizar através da sua criação magistral, a mais nobre prova da beleza espiritual, expressada através da grandeza bucólica de uma alma que sentiu e externou a natureza sertaneja da forma mais bela e encantadora. Filho do Pajeú pernambucano, lírio sublime da poesia de São José do Egito, o poeta tinha uma sensibilidade e uma capacidade de pintar a natureza através das palavras, que nenhum pintor por mais capacitado que seja conseguiu. Cancão através da poesia mostrou a natureza em movimento. Ao ler seus poemas, a nossa alma assiste os pingos dos orvalhos cristalinos escorrendo no corpo nu das flores; nosso olhar contempla os córregos borbulhando no coração da mata; a audição escuta a voz tristonha de um sabiá na solidão; o sono é despertado com um pequeno rouxinol nas brechas do telhado; nossa admiração contempla as auroras e os arrebóis numa mutação de cores, o corpo sente o delicioso cheiro do mel sendo fabricado na moagem de um engenho; nosso espírito se encanta vendo os pirilampos acendendo e apagando suas luzes na escuridão noturna; nosso Ser vê os campos floridos, cheios de borboletas e colibris dançando numa festa matutina, e se assusta com as tempestades e as enchentes no rio da aldeia egipciense.
Ao debruçasse na poesia do poeta pássaro, um conforto de delicadezas atinge a nossa alma, como o bater das asas de uma borboleta sobre as flores de um plácido jasmim. Cada pingo de orvalho que escorre através dos seus poemas bucólicos, banha nosso espírito de afetos, numa cachoeira de rimas e ritmos, com palavras belas, que embevecem e transbordam a lagoa dos nossos sentimentos. A sua poesia faz as estrelas ficarem bem próximas da gente, nas quais, os dedos da nossa alma podem tocá-las e senti-las, recebendo os fulgores poéticos que clareiam a imensidão dos sentidos. Nos poemas de Cancão tudo se torna possível. O “cisne”, pássaro de outras regiões vem nadar no rio da sua aldeia; a “maresia indiana” traz seu cheiro para perfumar o corpo de uma professora amiga; a pantera solta rugidos nas grutas do seu pequeno lugarejo; algumas flores de outras regiões embelezam as campinas do Pajeú; enfim, o poeta transporta para sua aldeia animais e plantas de outras regiões, construindo um inusitado nicho ecológico.
Cancão conseguiu através de a poesia campestre mostrar a caatinga sertaneja na explosão invernal dos tempos de chuvas da forma mais encantadora possível. Seu poema “Depois da Chuva” desenha a beleza da flora e fauna do sertão nordestino de uma forma tão sublime e bela, que até parece que todos os poros do corpo tinham um olhar de sensibilidade atento para aquela “tarde de abril”, quando o rouxinol, o sabiá, os colibris, os regatos, as borboletas, as abelhas, o sol e as flores, formaram um mundo de encantos bucólicos, ocultados na alma e revelados através de um poema clássico, digno da mais fiel enciclopédia Universal da Poesia.
O poeta/verde conseguiu com profunda sensibilidade e domínio das palavras aproximar o homem da criação divina. Cada verso, que ele fez sobre a natureza, é de uma perfeição tão impressionante, que uma enxurrada de emoções inunda cada lagoa do nosso coração. Mergulhar no mundo do aedo bucólico, saborear seus poemas, sonetos e outras formas literárias nos torna o mais humano dos humanos; faz-nos crer, que o mundo visto por ele e expressado pela verve é o lugar do sonho e da fantasia. Cancão nos proporcionou a viajar nas asas dos colibris, dando beijos nas flores das campinas; nos fez sentar nas estrelas; nos fez sonhar com a liberdade através de um sabiá na solidão de uma gaiola; levou-nos aos riachos cristalinos da sua aldeia; nos fez verter prantos pela rolinha que teve o “Ninho Roubado”; causou-nos uma reflexão profunda sobre a morte, na solidão das “Seis horas no Cemitério”; mostrou-nos os detalhes da casa sertaneja, que abrigava um pobre ébrio solitário; transportou-nos para o mundo dos aborígines do Pajeú, com seus pajés, feiticeiros, caciques, arcos, flechas e tacapes; enfim, a sua poesia é uma viagem de delírios, devaneios e sensações através das belezas da natureza e da profundeza da alma humana.
Sentir os seus encantos poéticos, causa ao espírito humano uma espécie de doçura e ternura angelical. Cresce dentro da gente uma vontade inexorável de contemplar a vida e deixa a nossa existência enternecida.
Mas, como ser humano, Cancão sofreu as dores da solidão. No poema “Lamentos ao pé do tumulo”, ele externa todo o ódio a terra que tanto decantou, por ela ter levado a mulher amada.
Acredito que o poeta do “Pajeú das flores” deve está nesse instante no paraíso celestial da poesia, declamando poemas, acendendo estrelas e jogando orvalhos nas madrugadas celestiais.
Se os gregos de outrora tivessem conhecido a poesia de Cancão, com certeza o teriam posto no trono de Zeus e colocaria na sua cabeça divina a coroa de um Deus/Poeta.
Hoje, depois de vários milênios, pós era grega, e depois de algumas décadas da partida do vate da natureza para morar junto aos deuses das artes no Olimpio celestial, o poeta egipciense é extremamente necessário para esse mundo louco, de tantos sentimentos vazios e mecânicos.
Se um dia Deus resolver mandar um emissário a terra, acredito que será o poeta campestre que virá, trazendo o mesmo espírito humano, a mesma inocência e simplicidade, a grande sensibilidade poética e os ensinamentos de respeito, amizade, fraternidade e solidariedade, que ele tanto mostrou através dos seus versos.
Apesar da sua poesia não denunciar de forma constante as opressões sociais sofridas pelos afortunados e desamparados do poder governamental, Cancão seguiu o mesmo caminho na construção do homem a partir da natureza, como fez o grande filósofo e educador Jean-Jacques Rousseau, no clássico e poético livro, o “Emílio”.
Mesmo não relatando as agressões do homem à natureza, Cancão foi e é uma espécie de educador ambiental. A poesia por si própria educa o homem, e quem lê os versos campesinos do poeta pajeusense, enxerga a natureza de maneira interativa, respeitando-a com carinho e admiração.
Apesar do pouco estudo acadêmico, tendo só cursado o primário da época, Cancão foi um exímio autoditada. Ele leu os grandes poetas clássicos, como Casemiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves, dentre outros, sofrendo assim, certa influência dos poetas clássicos. Mas, acima de tudo ele teve um estilo literário próprio, embora tenha escrito alguns sonetos. O mais impressionante era a grandeza da verve. Com poucos temas ele criava um mundo de poesia. Bastava uma cena fugaz de alguma manifestação da natureza, que ele a eternizava de maneira impressionante. Não foi um poeta da viola como a maioria dos poetas contemporâneos, mas glosava de improviso entre os vates amigos com a mesma capacidade dos grandes menestréis do repente.
O nome de batismo era João Batista de Siqueira, mas não poderia existir um apelido mais digno do que Cancão, que é um pássaro de cor preta e branca, que habita as altas arvores da caatinga sertaneja e encanta através de um canto agudo e melodioso.
Todos os amantes da poesia deveriam agradecer ao grande criador do universo, por ter presenteado sobre a forma humana, a prova mais fiel da sua existência enquanto arquiteto das coisas belas que compõem o mundo dos humanos. Cancão, pureza da alma, exemplo de humildade, encantador que usou a poesia para elevar nosso espírito, pincel vernáculo dos poemas campesinos, voz singela dos humildes, plantador de sonhos e fantasias, obrigado por nos proporcionar um mundo belo, cheio de auroras e esperanças, nesses tempos de tantos ocasos e incertezas.
Gilmar Leite
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Depois da Chuva


Era uma tarde de abril
A luz do sol se escoava;
Um traço da cor de anil
O céu deserto mostrava.
Num lago triste e sereno
Nadava um cisne pequeno
Eriçando as alvas plumas.
As derradeiras neblinas
Faziam lindas ondinas
Por entre as brancas espumas.
I
Um sabiá pesaroso
Nos galhos em que nasceu
Cantava triste e choroso
As mágoas do peito seu.
O sol além se deitava
A sua luz se esvasava.
Pela ramagem da horta
A brisa em leves ruídos
Levava os ternos gemidos
Da tarde já quase morta.
II
A água branda descia
Pelo pequeno gramado
A relva fresca e macia
Era um tapete rendado
Se ouvia lá na colina
No coração da campina
Soluçar uma cascata
E o sol com seus lampejos
Dava seus derradeiros beijos
No rosto verde da mata.
III
O sol, com luz amarela
Dourava os morros azuis
Tornando o céu uma bela
Pulverização de luz
A aura fresca e macia
Por entre a mata fazia
Os mais suaves rumores
As borboletas douradas
Se misturavam vexadas
Bebendo o róscio das flores
IV

As auras rumorejavam
Com lentidão e leveza
Os regatos retratavam
Um lindo céu azul de turquesa
Os orvalhos cristalinos
Se desprendiam divinos
Da copa dos arvoredos
Nas carnaúbas rendadas
Como com as mãos espalmadas
O sol brincava em seus dedos.
V
Voavam pelos verdores
Lindos colibris dourados
Sugando o néctar das flores
Dos jiquiris borrifados
No pomar um rouxinol
Contemplava o arrebol
Numa profunda tristeza
Um traço débil de luz
Rasgava os panos azuis
Do corpo da natureza.
VI
Depois os ventos mansinhos
Sopravam no campo vago
Fazendo alguns burburinhos
Na face lisa do lago
As abelhas preguiçosas
Se escondiam nas rosas
Que a natureza burila
E o cisne de brancas penas
Cortava as águas serenas
Da superfície tranqüila.

João Batista de Siqueira (Cancão )

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

RIO PAJEÚ



CONTEMPLANDO O PAJEÚ

Sobre a margem contemplo extasiado
Estender o seu leito, qual um lençol,
Recebendo os cristais beijos do sol
O sutil Pajeú, todo rendado.
O seu corpo ora reto, ora curvado,
Entre as rochas, descendo em corredeiras,
Vai beijando alguns troncos, ribanceiras,
Como alguém que sofrendo está partindo,
Suas águas são lágrimas sentindo
A saudade vertendo em cachoeiras.

Sobre a rocha a pequena “lavadeira”,
Lava as roupas do Deus onipresente;
Diz a crença que o pássaro inocente
Já nasceu pra essa tarefa altaneira.
A branquíssima garça pantaneira
Com encantos demonstra exuberância,
Dando passos com lírica elegância.
E nos cantos que ficam alagados
Os pequenos jasmins bem perfumados,
Soltam das flores, dúlcida fragrância.

Eu me lembro do meu tempo de infância
Desvendando do rio os seus segredos,
Enfrentado os remansos sem ter medos
Escutando um concriz em ressonância.
Só sentia no peito uma ganância
De buscar terra num lugar mais fundo;
Mergulhando sem medo do profundo,
Praticando as mais loucas fantasias,
Dando saltos, fazendo estripulias,
Demonstrando um menino vagabundo.

No seu solo que sempre foi fecundo
Vejo as flores de espécies delicadas,
Exalando as essências perfumadas
Atraindo os colibris num segundo.
As abelhas surgidas de outro mundo,
Com leveza buscam as belas rosas
Pra tirarem de formas carinhosas,
Todo o néctar que existe no vergel,
Pra fazer com perícia o doce mel
Escolhido das flores mais cheirosas.

Olho as águas nas tardes invernosas
Estrondando entre as rochas perfurantes,
Dando curvas com espumas flutuantes
Igualmente as serpentes venenosas.
Elas dão impressão que estão raivosas
Através do barulho da corrente,
Onde penso que cada rocha sente
A partida veloz das fortes águas;
Inundando com lágrimas as mágoas
Recebidas na fúria da enchente.

Um sutil beija-flor voa contente
Entre os galhos dum velho umbuzeiro,
O seu vôo encantado e bem maneiro
Deixa a força da gravidade ausente.
A grandeza da vida na semente
É mostrada através da flor oculta.
Quando a planta nasce, dela resulta,
Um perfume de essência delicada,
Encantando minha alma extasiada
Onde a sabedoria fica inculta.

Um veloz sabiá sem medo insulta
Um cruel carcará sanguinolento,
Sobre a margem usando o passo lento
Surge um cágado com a face estulta;
O fura-barreira de forma culta
Nas barreiras constrói a residência,
Através do local faz reverência
Aos poderes da santa natureza,
Onde a casa respeita a correnteza
Dum inverno que mostra inclemência.

Vejo as águas passarem em turbulência
Arrastando alguns galhos volumosos;
Só ficando umbuzeiros poderosos,
Pois seus troncos têm grande resistência.
Quando passa a enxurrada com fluência,
Fica o rio bem mais calmo e sonolento;
Velhas árvores servem de aposento
Para as aves fazerem lindos ninhos;
O vaqueiro nas margens faz caminhos
Conduzindo a boiada em passo lento.

Quando a tarde desmaia um sentimento
Deixa a face do rio em nostalgia,
Com saudades da luz que tem o dia
Onde a vida possui contentamento.
O crepúsculo num vermelho cinzento,
Faz mudar os fulgores da paisagem,
Dando pouca clareza para a imagem,
Com as pálidas lâmpadas do sol,
Desenhando na tela um arrebol,
Onde as nuvens são monstros da miragem.

Vejo as aves que buscam na ramagem
Um refúgio temendo os predadores,
Que são bichos ferozes caçadores
Procurando animais que tem plumagem.
Um téu-téu dá um grito sobre a margem
Percebendo a presença da serpente;
Nesse instante despertam do latente
Animais que têm hábito soturno,
Entre as folhas caminham no noturno
Procurando algum pássaro inocente.

Um sutil vaga-lume aurifulgente
Aparece de lâmpada na mão,
Clareando a sombria escuridão
Através dum fulgor sempre luzente.
Vejo a lua surgindo do nascente
Com seus raios pintando de dourado,
Desenhando um painel amarelado,
Espargindo um fulgor na correnteza,
Despertando da calma natureza
Algum bicho que vive ocultado.

Meu semblante não dorme extasiado
Contemplando as belezas do sertão;
Através dum rio que tem coração
E por isso me deixa apaixonado.
Só falei do seu córrego invernado
Não citei as correntes de seus versos,
Onde as águas fluem cantos imersos
Na enchente sutil dos sentimentos,
Transbordando de belos pensamentos
A lagoa dos meus sonhos diversos.